quarta-feira, 30 de julho de 2014

Está faltando água

O ano de 2014 começou com duas notícias perigosas para o Brasil: problemas de abastecimento de água na maior região metropolitana do país e os reservatórios das hidrelétricas em níveis cronicamente baixos, a ponto de fazer retornar o fantasma do racionamento energético. Mais que casos isolados, os dois fatos apontam para uma complexa realidade que teremos de enfrentar na situação hídrica. Ao mesmo tempo que continuamos sendo um dos países com maior quantidade de água doce do mundo, começamos a ter dificuldades típicas de países desérticos ou subdesenvolvidos. A piora da seca no Nordeste e o agravamento das enchentes no resto do território confirmam que o Brasil precisará mudar radicalmente sua relação com a água.

O uso crescentemente desordenado de água, a falta de tratamento de esgoto e a negligência com o desmatamento de áreas sensíveis nas nascentes geraram uma realidade adversa. Especialistas afirmam que o Brasil está em uma encruzilhada: ou toma as decisões corretas ou, em um futuro próximo, apenas uma pequena parcela da população terá acesso a água de qualidade, afetando o dia a dia dos habitantes, das indústrias, da construção civil e do agronegócio.

“O grande problema não é o fim da abundância hídrica no Brasil, mas é o fato de que a maioria das bacias hidrográficas brasileiras encontra-se ‘doente’, com seu regime fluvial altamente descontrolado. Ou seja, as enchentes estão muito maiores nos períodos chuvosos e as secas estão mais longas nos períodos de estiagem”, enfatiza Adacto Ottoni, assessor de meio ambiente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ) e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “O que temos de fazer é recuperar a ‘saúde’ das nossas bacias hidrográficas, o que se consegue a partir de obras e intervenções com sustentabilidade ambiental, regularizando o regime dos rios e recuperando a biodiversidade natural do ecossistema da bacia hidrográfica.”

MÚLTIPLOS VILÕES

Não somos historicamente secos como Israel e os países árabes e nem estamos com um sistema saturado como o dos europeus, que muitas vezes precisam dessalinizar a água do mar, como faz a Espanha. Mas, assim como os norte-americanos, parece que fomos pegos de surpresa. Com tanta fartura de água, o país se acostumou a desperdiçar e nunca dedicou atenção a planejamento, tratamento ou preservação das fontes dos mananciais nacionais. O crescimento desordenado das cidades contribui para esta situação, que exigirá uma mudança radical de postura, como atesta Samuel Barreto, coordenador do Movimento Água para São Paulo. “A solução para a ampliação do abastecimento de água não pode ser, novamente, captar mais água. Não se resolve a crise do Sistema Cantareira, em São Paulo, buscando a água do Rio Paraíba do Sul, pois este rio também tem problemas.” O especialista relembra ainda um dado alarmante: o consumo paulistano, por exemplo, já supera em 4% a capacidade do sistema e, em dez anos, esse descasamento chegará a 15%. “Não dá para viver entrando todo mês com uma conta que não fecha.”
Na visão do coordenador, a crise atual força, ao menos, o tema entrar com importância na agenda nacional de discussões. “O problema não é apenas do governo, que precisa dar mais atenção ao assunto e ampliar o planejamento e a gestão hídrica. Temos que atuar forte na demanda, com uma mudança de consciência, e também da oferta. Está na hora de cidades como São Paulo terem um forte programa de reuso da água e de construções que captam água da chuva. Tudo isso reduz a pressão sobre o sistema. E precisamos melhorar a cobertura florestal. Quando vemos o caso da Cantareira, nos assustamos, pois toda área que precisaria ser preservada tem 500 mil hectares – são 500 mil campos de futebol. Mas, analisando melhor, vemos que a área crítica é de 15 mil hectares. Disso podemos cuidar, reflorestar com maior facilidade.”

Outros especialistas pensam parecido. Para Glauco Kimura de Freitas, coordenador do Programa de Água do WWF-Brasil, é difícil até mesmo identificar o causador do problema. “A abundância gerou uma cultura do desperdício. Com tamanha disponibilidade de água e um regime de chuvas tropicais privilegiado, criamos uma mentalidade de que a água nunca vai acabar. É um pouco complicado apontar culpados em momentos de crise. Todos nós temos parte da culpa, mas também somos a solução: governos, empresas e cidadão. As empresas devem olhar para além dos muros da fábrica. Não basta mais cumprir a legislação e fazer a lição de casa. Os riscos ligados à água, seja pela escassez, seja pela abundância (enchentes), irão afetar a todos, inclusive aquelas que já estão fazendo sua lição de casa”, garante.

Para o coordenador, entre os aspectos extremamente alarmantes está o assoreamento dos rios provocado pelo desmatamento irregular de nascentes e matas ciliares, a poluição das águas e a média nacional de coleta e tratamento de esgoto não chegar a 50% do total dos domicílios. A oferta de água, portanto, tem diminuído, mas a demanda tem aumentado devido ao crescimento populacional. “Hoje, cerca de 80% da população brasileira vive nas cidades. Há 30 anos, esse percentual era menor que 70%. Na média nacional, o país mantém uma enorme oferta de água, mas nas regiões de maior disponibilidade, como a Bacia Amazônica, vive menos de 10% da população. Já na região Sudeste, onde se encontra mais de 50% da população, a oferta de água é menor do que 20%. Ou seja, o descompasso demográfico entre demanda e oferta faz com que a afirmação seja verdadeira: estamos, sim, presenciando o fim da abundância hídrica no Brasil.”

Para Adacto Ottoni, em meio a tudo isso, há um vilão claro: o poder econômico. “O Brasil evoluiu para esse quadro, com rios assoreados, com despejo de esgoto in natura e com a captação de água para abastecimento cada vez mais distante das grandes cidades, além de rios cada vez mais degradados, em função da ausência de políticas públicas com sustentabilidade ambiental para o saneamento e da má gestão dos recursos hídricos. O poder econômico sempre fala mais alto do que os reais interesses da sociedade e do que a preservação ambiental.”

PROBLEMA AVANÇA PARA O NORTE

Os problemas vividos no Nordeste, Sudeste e no Sul do Brasil começam a se repetir no Norte e no Centro-Oeste. De acordo com Paulo Libânio, assessor especial do diretor de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), atualmente o país vê o avanço da fronteira agrícola para as regiões em que se encontra a maior parte da água doce brasileira. No entanto, esses locais que concentram as bacias dos rios Tocantins, Araguaia e Amazonas não têm comitês que controlem o uso dos recursos naturais.
“O ideal seria que nos antecipássemos ao problema, criássemos os comitês antes de essas bacias estarem em risco. Agora, o uso da água é feito sem controle, sem qualquer tipo de compensação”, destaca. O forte crescimento das exportações do agronegócio brasileiro também agrava o caso. Até o fim de 2014, o país terá vendido a outros países mais de 40 milhões de toneladas de soja – uma produção que exige grande volume de água para se viabilizar. Na indústria do café, por exemplo, segundo o WWF, para obter uma xícara de expresso, a cadeia de produção do grão consumiu 140 litros de água.

Com base nesse conceito, tudo o que consumimos necessita de água direta ou indiretamente. E, dessa forma, a camisa de algodão produzida no Paquistão deveria ser uma das mais caras do mundo, pois o país é semiárido e o algodão é predominantemente irrigado. Mas cobrar pela água embutida não é uma solução. O que se defende é o cálculo da pegada hídrica (quantidade de água consumida na cadeia produtiva) das commodities agrícolas em cada país e os produtores diminuírem esses índices em seus próprios territórios.

SOLUÇÕES TECNOLÓGICAS

Barreto, do Movimento Água para São Paulo, lembra que o país já tem alguns exemplos positivos, como os Fundos da Água, projeto que cuida das nascentes dos rios em 28 cidades da América Latina, sendo nove delas no Brasil. Mas, além disso, precisa buscar uma eficiência igual à japonesa no sistema de tubulação de água, o que resolveria em boa parte o problema, uma vez que as perdas chegam a 40% do total de algumas cidades. A Alemanha, com forte consciência ambiental, é outro exemplo que poderia ser seguido, informa o especialista. Pelo lado positivo, a Política Nacional de Recursos Hídricos, vigente no Brasil desde 1997, é inspirada no bem-sucedido modelo francês de gestão participativa e descentralizada das águas. O Brasil é a primeira nação da América Latina a desenvolver um Plano Nacional de Recursos Hídricos. Temos 200 comitês de bacias criados no país. Mas falta efetividade e um planejamento global.
Ottoni, do Crea-RJ, acredita que um dos pilares, junto com a redução do consumo e a preservação das fontes geradoras, é a busca por tecnologias limpas, como a ampliação da coleta e do tratamento de esgotos sanitários, incluindo o reuso e o reaproveitamento do lodo do tratamento para produção de biogás e composto orgânico. E até pela construção de pequenas e médias barragens de cheias nos trechos médio e superior dos rios, bem como de bacias de detenção para reter o escoamento superficial das encostas.

Já Paulo Libânio, da ANA, enfatiza que pequenas ações de conscientização podem fazer uma grande diferença, desde que as campanhas não sejam esporádicas. Aos produtores rurais, importantes pilares desse processo, já se oferecem modelos de incentivo para que preservem os rios e as nascentes dentro de suas propriedades. “Precisamos de proteção permanente. O importante é manter as práticas conservacionistas e manter sempre o diálogo.”

Fonte: Revista da Cultura