O ano de 2014 começou com duas notícias perigosas para o Brasil:
problemas de abastecimento de água na maior região metropolitana do país
e os reservatórios das hidrelétricas em níveis cronicamente baixos, a
ponto de fazer retornar o fantasma do racionamento energético. Mais que
casos isolados, os dois fatos apontam para uma complexa realidade que
teremos de enfrentar na situação hídrica. Ao mesmo tempo que continuamos
sendo um dos países com maior quantidade de água doce do mundo,
começamos a ter dificuldades típicas de países desérticos ou
subdesenvolvidos. A piora da seca no Nordeste e o agravamento das
enchentes no resto do território confirmam que o Brasil precisará mudar
radicalmente sua relação com a água.
O uso crescentemente desordenado de água, a falta de tratamento de
esgoto e a negligência com o desmatamento de áreas sensíveis nas
nascentes geraram uma realidade adversa. Especialistas afirmam que o
Brasil está em uma encruzilhada: ou toma as decisões corretas ou, em um
futuro próximo, apenas uma pequena parcela da população terá acesso a
água de qualidade, afetando o dia a dia dos habitantes, das indústrias,
da construção civil e do agronegócio.
“O grande problema não é o fim da abundância hídrica no Brasil, mas é o
fato de que a maioria das bacias hidrográficas brasileiras encontra-se
‘doente’, com seu regime fluvial altamente descontrolado. Ou seja, as
enchentes estão muito maiores nos períodos chuvosos e as secas estão
mais longas nos períodos de estiagem”, enfatiza Adacto Ottoni, assessor
de meio ambiente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio
de Janeiro (Crea-RJ) e professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. “O que temos de fazer é recuperar a ‘saúde’ das nossas bacias
hidrográficas, o que se consegue a partir de obras e intervenções com
sustentabilidade ambiental, regularizando o regime dos rios e
recuperando a biodiversidade natural do ecossistema da bacia
hidrográfica.”
MÚLTIPLOS VILÕES
Não somos historicamente secos como Israel e os países árabes e nem
estamos com um sistema saturado como o dos europeus, que muitas vezes
precisam dessalinizar a água do mar, como faz a Espanha. Mas, assim como
os norte-americanos, parece que fomos pegos de surpresa. Com tanta
fartura de água, o país se acostumou a desperdiçar e nunca dedicou
atenção a planejamento, tratamento ou preservação das fontes dos
mananciais nacionais. O crescimento desordenado das cidades contribui
para esta situação, que exigirá uma mudança radical de postura, como
atesta Samuel Barreto, coordenador do Movimento Água para São Paulo. “A
solução para a ampliação do abastecimento de água não pode ser,
novamente, captar mais água. Não se resolve a crise do Sistema
Cantareira, em São Paulo, buscando a água do Rio Paraíba do Sul, pois
este rio também tem problemas.” O especialista relembra ainda um dado
alarmante: o consumo paulistano, por exemplo, já supera em 4% a
capacidade do sistema e, em dez anos, esse descasamento chegará a 15%.
“Não dá para viver entrando todo mês com uma conta que não fecha.”
Na visão do coordenador, a crise atual força, ao menos, o tema entrar
com importância na agenda nacional de discussões. “O problema não é
apenas do governo, que precisa dar mais atenção ao assunto e ampliar o
planejamento e a gestão hídrica. Temos que atuar forte na demanda, com
uma mudança de consciência, e também da oferta. Está na hora de cidades
como São Paulo terem um forte programa de reuso da água e de construções
que captam água da chuva. Tudo isso reduz a pressão sobre o sistema. E
precisamos melhorar a cobertura florestal. Quando vemos o caso da
Cantareira, nos assustamos, pois toda área que precisaria ser preservada
tem 500 mil hectares – são 500 mil campos de futebol. Mas, analisando
melhor, vemos que a área crítica é de 15 mil hectares. Disso podemos
cuidar, reflorestar com maior facilidade.”
Outros especialistas pensam parecido. Para Glauco Kimura de Freitas,
coordenador do Programa de Água do WWF-Brasil, é difícil até mesmo
identificar o causador do problema. “A abundância gerou uma cultura do
desperdício. Com tamanha disponibilidade de água e um regime de chuvas
tropicais privilegiado, criamos uma mentalidade de que a água nunca vai
acabar. É um pouco complicado apontar culpados em momentos de crise.
Todos nós temos parte da culpa, mas também somos a solução: governos,
empresas e cidadão. As empresas devem olhar para além dos muros da
fábrica. Não basta mais cumprir a legislação e fazer a lição de casa. Os
riscos ligados à água, seja pela escassez, seja pela abundância
(enchentes), irão afetar a todos, inclusive aquelas que já estão fazendo
sua lição de casa”, garante.
Para o coordenador, entre os aspectos extremamente alarmantes está o
assoreamento dos rios provocado pelo desmatamento irregular de nascentes
e matas ciliares, a poluição das águas e a média nacional de coleta e
tratamento de esgoto não chegar a 50% do total dos domicílios. A oferta
de água, portanto, tem diminuído, mas a demanda tem aumentado devido ao
crescimento populacional. “Hoje, cerca de 80% da população brasileira
vive nas cidades. Há 30 anos, esse percentual era menor que 70%. Na
média nacional, o país mantém uma enorme oferta de água, mas nas regiões
de maior disponibilidade, como a Bacia Amazônica, vive menos de 10% da
população. Já na região Sudeste, onde se encontra mais de 50% da
população, a oferta de água é menor do que 20%. Ou seja, o descompasso
demográfico entre demanda e oferta faz com que a afirmação seja
verdadeira: estamos, sim, presenciando o fim da abundância hídrica no
Brasil.”
Para Adacto Ottoni, em meio a tudo isso, há um vilão claro: o poder
econômico. “O Brasil evoluiu para esse quadro, com rios assoreados, com
despejo de esgoto in natura
e com a captação de água para abastecimento cada vez mais distante das
grandes cidades, além de rios cada vez mais degradados, em função da
ausência de políticas públicas com sustentabilidade ambiental para o
saneamento e da má gestão dos recursos hídricos. O poder econômico
sempre fala mais alto do que os reais interesses da sociedade e do que a
preservação ambiental.”
PROBLEMA AVANÇA PARA O NORTE
Os problemas vividos no Nordeste, Sudeste e no Sul do Brasil começam a
se repetir no Norte e no Centro-Oeste. De acordo com Paulo Libânio,
assessor especial do diretor de recursos hídricos da Agência Nacional de
Águas (ANA), atualmente o país vê o avanço da fronteira agrícola para
as regiões em que se encontra a maior parte da água doce brasileira. No
entanto, esses locais que concentram as bacias dos rios Tocantins,
Araguaia e Amazonas não têm comitês que controlem o uso dos recursos
naturais.
“O ideal seria que nos antecipássemos ao problema, criássemos os comitês
antes de essas bacias estarem em risco. Agora, o uso da água é feito
sem controle, sem qualquer tipo de compensação”, destaca. O forte
crescimento das exportações do agronegócio brasileiro também agrava o
caso. Até o fim de 2014, o país terá vendido a outros países mais de 40
milhões de toneladas de soja – uma produção que exige grande volume de
água para se viabilizar. Na indústria do café, por exemplo, segundo o
WWF, para obter uma xícara de expresso, a cadeia de produção do grão
consumiu 140 litros de água.
Com base nesse conceito, tudo o que consumimos necessita de água direta
ou indiretamente. E, dessa forma, a camisa de algodão produzida no
Paquistão deveria ser uma das mais caras do mundo, pois o país é
semiárido e o algodão é predominantemente irrigado. Mas cobrar pela água
embutida não é uma solução. O que se defende é o cálculo da pegada
hídrica (quantidade de água consumida na cadeia produtiva) das
commodities agrícolas em cada país e os produtores diminuírem esses
índices em seus próprios territórios.
SOLUÇÕES TECNOLÓGICAS
Barreto, do Movimento Água para São Paulo, lembra que o país já tem
alguns exemplos positivos, como os Fundos da Água, projeto que cuida das
nascentes dos rios em 28 cidades da América Latina, sendo nove delas no
Brasil. Mas, além disso, precisa buscar uma eficiência igual à japonesa
no sistema de tubulação de água, o que resolveria em boa parte o
problema, uma vez que as perdas chegam a 40% do total de algumas
cidades. A Alemanha, com forte consciência ambiental, é outro exemplo
que poderia ser seguido, informa o especialista. Pelo lado positivo, a
Política Nacional de Recursos Hídricos, vigente no Brasil desde 1997, é
inspirada no bem-sucedido modelo francês de gestão participativa e
descentralizada das águas. O Brasil é a primeira nação da América Latina
a desenvolver um Plano Nacional de Recursos Hídricos. Temos 200 comitês
de bacias criados no país. Mas falta efetividade e um planejamento
global.
Ottoni, do Crea-RJ, acredita que um dos pilares, junto com a redução do
consumo e a preservação das fontes geradoras, é a busca por tecnologias
limpas, como a ampliação da coleta e do tratamento de esgotos
sanitários, incluindo o reuso e o reaproveitamento do lodo do tratamento
para produção de biogás e composto orgânico. E até pela construção de
pequenas e médias barragens de cheias nos trechos médio e superior dos
rios, bem como de bacias de detenção para reter o escoamento superficial
das encostas.
Já Paulo Libânio, da ANA, enfatiza que pequenas ações de conscientização
podem fazer uma grande diferença, desde que as campanhas não sejam
esporádicas. Aos produtores rurais, importantes pilares desse processo,
já se oferecem modelos de incentivo para que preservem os rios e as
nascentes dentro de suas propriedades. “Precisamos de proteção
permanente. O importante é manter as práticas conservacionistas e manter
sempre o diálogo.”
Fonte: Revista da Cultura