quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Uma Fábula para o Amanhã

ERA UMA VEZ uma cidade no coração do s Estados Unidos onde todos os seres vivos pareciam estar em harmonia com o seu ambiente. A cidade ficava em meio a um atabuleiro de prósperas fazendas, com campos de cereais e pomares nas encostas das montanhas onde, na primavera, nuvens brancas de flores flutuavam sobre o verde. No outono, os carvalhos, os bordos e as bétulas criavam um esplendor de cores que inflamava e tremeluzia sobre um cenário de coníferas. Então raposas repousavam nas montanhas e cervos cruzavam silenciosamente os campos, semiocultos nas névoas das manhãs de outono.
Ao longo das estradas, loureiros, viburnos e amieiros, grandes samambaias e flores selvagens encantavam os olhos dos viajantes na maior parte do ano.
Mesmo no inverno, as margens das estradas eram lugares cheios de beleza, onde inúmeros pássaros vinham se alimentar das bagas e das sementes das ervas secas que despontavam na neve. A região campestre era, com efeito, famosa pela abundância e pela variedade de pássaros, e quando vinha o dilúvio de pássaros migrantes, na primavera e no outono, as pessoas viajam de grande distancia para observá-los. Outros vinham pescar nos rios, que corriam límpidos e gelados das montanhas e continham pequenas lagoas sombrias onde as trutas se abrigavam. Assim fora desde os dias, muitos anos atrás, em que os primeiros colonizadores haviam erguido suas casas, cavado seus poços e construído seus celeiros.
Então uma estranha praga se infiltrou naquela região e tudo começou a mudar. Algum tipo de feitiço maléfico se instalou na comunidade: misteriosas doenças atacaram as galinha; o gado e os carneiros adoeceram e morreram. Por toda parte, pairava a sombra da morte. Os fazendeiros falavam de muitas doenças em sua família. Na cidade, os médicos ficavam cada vez mais intrigados com os novos tipos de doenças que apareciam em seus pacientes. Houve muitas mortes súbitas e não explicadas, não apenas entre adultos, mas também entre crianças, subitamente acometidas pela doença enquanto brincavam e morriam em poucas horas.
Havia uma estranha quietude. Os pássaros, por exemplo – para onde tinham ido? Muitas pessoas falavam neles, confusas e inquietas. Os alimentadores de pássaros nos quintais estavam desertos. Os poucos pássaros que se viam estavam moribundos; tremiam violentamente e não conseguiam voar. Era uma primavera sem vozes. Nas manhãs que outrora palpitavam como o coro de pintaroxos, tordos, pombas, gaios, carriças e diversas vozes de outros pássaros, agora não havia nenhum som. Apenas o silêncio pairava sobre os campos, bosques e pântanos.
Nas fazendas, as galinham chocavam, mas os pintinhos não nasciam. Os fazendeiros se queixavam de que não conseguiam criar porcos – as ninhadas eram pequenas e os filhotes sobreviviam apenas poucos dias. As macieiras estavam florescendo, mas não havia abelhas zumbindo ao redor das flores, portanto não havia polinização, e não haveria frutos.
As margens das estradas, antes tão atraentes, estavam agora cobertas por uma vegetação seca e amarronzada, como se houvesse sido varrida pelo fogo. Também estavam em silêncio, desertas de tudo o que fosse vivo. Mesmo os rios estavam agora sem vida. Os pescadores amadores não mais os visitavam, pois todos os peixes haviam morrido.
Nas calhas, por baixo dos beirais, e entras a telhas dos telhados, um pó branco granuloso ainda se acumulava em alguns pontos; algumas semanas antes, ele caíra como neve sobre os telhados e os gramados, os campos e os rios.
Não havia sido nenhuma bruxaria, nenhuma ação inimiga que havia silenciado o ressurgir da nova vida nesse mundo devastado. As próprias pessoas tinham feito aquilo.
Essa cidade não existe realmente, mas poderia facilmente ter milhares de equivalentes nos Estados Unidos ou em qualquer parte do mundo. Não conheço nenhuma comunidade que tenha passado por todos os infortúnios que descrevo. Ainda assim, cada um desses desastres ocorreu, de fato, em algum lugar, e muitas comunidades reais já sofreram um bom número deles. Um espectro lúgubre se insinuou entre nós quase sem que percebêssemos, e essa tragédia imaginada pode facilmente se tornar uma crua realidade que todos devermos conhecer.
O que já silenciou as vozes da primavera em numerosas cidades dos Estados Unidos? Este livro é uma tentativa de explicar o ocorrido.

 Uma fábula para o amanhã. In: CARSON, Rachel, Primavera Silenciosa: São Paulo, Edição Melhoramentos, 1962.

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