Por Rodrigo Vizzotto
O “filé” do resíduo doméstico separado para a coleta seletiva acaba nas mãos dos denominados “piratas do lixo”, ocasionando prejuízos para os cerca de 700 catadores – cadastrados pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) – que sobrevivem da separação nas 14 Unidades de Triagem. Cada trabalhador recebe o equivalente a R$ 450 por mês. O problema é que, pela ação dos piratas, muitas vezes as unidades ficam ociosas por falta de material para reciclar.
A ação irregular afeta a própria coleta de cerca de 6 mil carroceiros e carrinheiros que atuam na Região Metropolitana. Além disso, provoca a queda de preço do quilo do material reciclado, devido à grande oferta. Os estragos provocados pela pirataria do lixo atingem ainda o meio ambiente, com o descarte inadequado do material que não é aproveitado pelos atravessadores. Esse lixo rejeitado costuma ser jogado em locais públicos ou mesmo em áreas não-degradadas, gerando a proliferação de doenças e poluição ambiental. No ano passado, o serviço de fiscalização do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), órgão que detém a competência para coleta e destinação do lixo, aplicou nada menos que mil autuações por ocorrências diversas, sendo 12 notificações para infratores que recolheram material reciclado em veículos de grande porte.
Atravessadores comprometem a reciclagem
A suspeita de que são os atravessadores quem mais lucram com o negócio do lixo não é de hoje. Para o articulador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR-RS), Alexandro Cardoso, a coleta seletiva com caminhão sem subsídio é inviável economicamente, pois os custos são maiores que o lucro. “Os custos da coleta seletiva em Porto Alegre não são públicos, mas avalio uma média de R$ 300 por tonelada. Assim, os caminhões recolhem para grandes geradores, mediante acerto prévio”, alerta. Segundo Cardoso, isso compromete cada vez mais a coleta. “Esta parte dificulta muito a subsistência dos catadores das Unidades de Triagem, e, mais ainda, os catadores que coletam nas ruas, tendo em vista que os grandes geradores vendem seus materiais e não os doam para os catadores organizados”, avalia.
A conseqüência é a queda no volume de material para reciclo nos centros de triagem, agravada, segundo Cardoso, com a mistura de materiais não-recicláveis. “Na hora de meter a mão no lixo, aquilo que a sociedade joga fora, na hora do trabalho sujo, somos nós que fazemos. É isso que sobra para nós. Temos que lembrar qual o futuro que queremos para os nossos filhos e netos a partir daqui”, desabafa.
O atravessador que retira o rejeito antecipadamente acaba por interferir no valor do preço praticado no mercado de recicláveis. Para o coordenador da Associação dos Catadores do Movimento dos Direitos dos Moradores de Rua (ATMDMR), Ivani Cláudio Muller, além deste problema, o material nobre descartado na coleta seletiva acaba parando na mão dos clandestinos. “No caso de PPs, o que levava três dias para completar um fardo, hoje demora dez dias”, aponta.
Destinação incerta e atuação particular
sem licenciamento
É mexendo com o lixo que aparece a sujeira. Esta frase encaixa-se como luva quando as ramificações do mercado paralelo se estabelecem de forma mais agressiva neste negócio lucrativo. A voracidade do mercado clandestino chega à beira da criminalidade, e estimula o furto de fios de cobre da rede de iluminação pública e a conseqüente depredação de monumentos que contenham ferro.
Na outra ponta, mais um agravante que retarda a plena regulamentação da coleta seletiva é a retenção dos resíduos sólidos por parte de condomínios e empresas que classificam a particulares sem licença ou cadastro no DMLU. O destino da eventual sobra da separação, ninguém sabe. O mesmo ocorre para utilitários que retiram restos de comidas de restaurantes.
Na região central da capital gaúcha, dentre os 11 bairros em que ocorre a coleta seletiva, a atuação dos clandestinos do lixo é mais acirrada no horário que antecede o recolhimento, já que o material descartado tem maior valor agregado – papel branco, papelão, alumínio – provenientes de escritórios, depósitos e estabelecimentos comerciais. Por conseqüência, não é difícil encontrar caminhões particulares, normalmente com placas de outros estados para dificultar a identificação e aplicação de multas, que transitam nas ruas e avenidas em busca do lixo.
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Mercadores de resíduos escravizam catadores
Os maus-tratos aos cavalos, o tráfego de carroças nas vias públicas e a questão de famílias de baixa renda que sobrevivem do lixo predominam nas discussões da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Porém, o atravessador na coleta do lixo começa a prevalecer como nova preocupação. Conforme o presidente da Comissão Especial dos Carroceiros, vereador Adeli Sell (PT), o intermediário privado é quem acaba ganhando a parcela mais importante no lixo seletivo. “Deveríamos recolher 400 toneladas-dia, mas estamos coletando via DMLU apenas 60 toneladas. Os galpões têm pouco resíduo, de péssima qualidade, porque o ‘lixo bom’ fica com o empreendedor privado, que escraviza o carroceiro e carrinheiro”, aponta.
Autor do Projeto de Lei para a conteinerização do lixo, Sell também defende a criação de oportunidades de emprego para as famílias que vivem da coleta de lixo. “Não cabe, em pleno século 21, termos pessoas catando lixo nas ruas, rasgando sacos para ver o que há dentro, espalhando sujeira pela cidade, quando a coleta deve ser pública, função esta do DMLU”, dispara. O vereador aponta uma brutal defasagem na coleta seletiva, com caminhões velhos e inadequados, problemas nos horários de coleta e a conseqüente perda de espaço para os carrinheiros, carroceiros e atravessadores. “A cidade está tomada de legiões de coletores de resíduos sólidos, portanto, parcelas de excluídos sociais, que deveriam ser reintegrados na atividade produtiva, através de reciclagem de mão-de-obra”, explica.
Promotoria de olho na ação dos "piratas"
Grande parte da coleta seletiva é desviada através dos carroceiros e carrinheiros, mas, ao lado destes, hoje se vê outros intermediários, de maior porte. Enquanto as unidades de reciclagem recebem quantidades cada vez menores de matéria-prima, os atravessadores ganham pelo maior volume retirado das ruas. A promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, Sandra Santos Segura, aponta que os atravessadores estão seguidamente em pauta nos diversos expedientes em tramitação. E este número é crescente. “Existem veículos e ônibus reformados trabalhando na coleta irregular de lixo seco pelo seu atrativo valor comercial”, avalia.
Do mesmo modo, diversos inquéritos são instaurados a partir de relatórios de ocorrências que chegam à Promotoria quando depósitos clandestinos são detectados. De forma ilegal, estes estabelecimentos contratam intermediários ou adquirem o material dos atravessadores. “É ali que se alimenta este comércio irregular”, aponta.
Alguns casos são tipificados no artigo 60 do Código Penal como crime ambiental – pela instalação e desenvolvimento de uma atividade potencialmente poluidora desprovida de licença ambiental. “Este recolhimento irregular acaba prejudicando todo o sistema integrado da coleta seletiva, desde a separação do lixo em domicílios até a sua destinação para as unidades de reciclagem, que garantem o ganha-pão de famílias que trabalham de forma organizada”. A promotora antecipa que, de uma maneira ou outra, não haverá unanimidade entre as pessoas que trabalham na clandestinidade em aceitar as condições de regularização da coleta e nem mesmo o poder público municipal terá condições de absorver toda esta mão-de-obra.
Carroceiros, morcegões e barões do lixo |
O comércio de lixo passa
pela mão de muita gente e da informalidade,
e acaba sendo um negócio lucrativo. E Porto
Alegre não detém exclusividade sobre
o comércio paralelo de reciclados. Em proporções
maiores, São Paulo – que contabiliza
45 mil catadores e mais de 150 cooperativas – já enfrenta
os barões do lixo há mais tempo. A
exemplo de camelôs e perueiros, os atravessadores
tomaram conta do negócio em concorrência
desfavorável aos carroceiros a partir da atuação
dos chamados “morcegões”, caminhões
velhos pertencentes a empresas irregulares, que trabalham
para grandes geradores de sucata reciclável.
De acordo com o Compromisso Empresarial para Reciclagem
(Cempre), uma associação sem fins lucrativos
mantida por empresas privadas de diversos setores,
a cada R$ 4 gerados na reciclagem de lixo, apenas
R$ 1 fica com os catadores. O restante vai para os
atravessadores. Em alguns casos, os catadores são
obrigados a pagar pedágio para a máfia
do lixo, que recebe o excedente coletado – pelo
qual pagam o preço mínimo – e
o repassam para as indústrias recicladoras.
A ação isolada da maioria dos catadores
não atende às exigências das
indústrias, como triturar, prensar e enfardar,
além da apresentação de nota
fiscal. Dados da Associação Brasileira
de Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe) mostram
que a capital paulista desperdiça em média
3,3 milhões de toneladas de lixo domiciliar.
Cálculos preliminares indicam que São
Paulo poderia economizar US$ 1,2 bilhão por
ano se reciclasse de forma organizada seus resíduos
sólidos. Resultado: os catadores e suas carroças
estão sendo expulsos das ruas. Em Porto Alegre,
um projeto do vereador Sebastião Melo (PMDB)
propõe a redução gradativa do
número de carroças até a proibição
definitiva da circulação de veículos
com tração animal na capital em oito
anos. “Os carroceiros sempre foram esquecidos,
agora estão sendo lembrados porque a matéria-prima
com que trabalham está muito valorizada”,
protesta Teófilo Motta, da Associação
dos Carroceiros da Grande Porto Alegre.
PASSIVO AMBIENTAL – O aumento de atravessadores no recolhimento de lixo reaproveitável poderá levar ao esgotamento e desequilíbrio no ciclo de reciclagem e excluir pequenos catadores. Na análise do contador ambiental e professor da UPF, Carlos Alexandre Gehm da Costa, as cooperativas de catadores poderão ficar desinteressadas na organização formal, porque o mercado está sendo desvalorizado por piratas. Ele acrescenta que a regulamentação e a legalização do trabalho do catador reduzirá o impacto da violência e os danos ao meio ambiente. “O passivo ambiental vai estourar lá na frente através da calamidade social ou esgotamento dos aterros”, alerta. Em seu relatório anual, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) classifica como crítico o cenário: das 170 mil toneladas diárias de resíduos sólidos urbanos gerados no país, pouco mais de 140 mil toneladas são coletadas, das quais 60% não têm destino final adequado.
PASSIVO AMBIENTAL – O aumento de atravessadores no recolhimento de lixo reaproveitável poderá levar ao esgotamento e desequilíbrio no ciclo de reciclagem e excluir pequenos catadores. Na análise do contador ambiental e professor da UPF, Carlos Alexandre Gehm da Costa, as cooperativas de catadores poderão ficar desinteressadas na organização formal, porque o mercado está sendo desvalorizado por piratas. Ele acrescenta que a regulamentação e a legalização do trabalho do catador reduzirá o impacto da violência e os danos ao meio ambiente. “O passivo ambiental vai estourar lá na frente através da calamidade social ou esgotamento dos aterros”, alerta. Em seu relatório anual, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) classifica como crítico o cenário: das 170 mil toneladas diárias de resíduos sólidos urbanos gerados no país, pouco mais de 140 mil toneladas são coletadas, das quais 60% não têm destino final adequado.
Fonte: Jornal Extra Classe