A decisão da Câmara Federal, de reformar a
rotulagem de produtos alimentícios que contêm organismos geneticamente
modificados (OGMs), desagradou a muita gente. Embora a proposta aprovada
não elimine a obrigatoriedade da informação sobre a presença de
transgênicos, ela a torna menos visível, substituindo o triângulo
amarelo com o “T” preto pela frase “contém transgênicos”, e apenas
quando houver mais de 1% de material geneticamente modificado no
produto.
As reações a essa atenuação do alerta obrigatório são mais do
que compreensíveis, e quem se opõe a ela tem bons motivos para
criticá-la, com base tanto no direito do consumidor quanto no princípio
fundamental da transparência: não faz muito sentido, portanto, que se
apele para táticas baseadas na disseminação de mentira, medo e
desinformação. Mas que são, exatamente, as que vêm ganhando força nas
redes sociais.
Primeiro, o medo: houve quem se desse ao trabalho de ressuscitar as
alegações feitas pela pesquisadora americana Stephanie Seneff, uma
especialista em Inteligência Artificial (e não em Agricultura, Medicina
ou Epidemiologia) do MIT, de que o glifosato – um pesticida normalmente
usado em conjunto com variedades transgênicas da companhia Monsanto –
tornaria “metade das crianças autistas até 2025”.
O “trabalho” de Seneff se apoia numa correlação entre o aumento no uso
de glifosato e do número de casos de autismo registrados nos Estados
Unidos, a partir da década de 90. O problema, como qualquer pessoa
familiarizada com os truques usados para mentir com estatísticas sabe, é
que correlação não corresponde, necessariamente, a causação.
Como nota o blog Respecful Insolence,
do oncologista David Gorski, outras coisas que também cresceram nos
anos 90 foram o consumo de vegetais orgânicos, o uso da internet e a
disseminação de telefones celulares. Será que a internet causa autismo?
Que o glifosato estimula a venda de celulares? Que os orgânicos aumentam
a vontade de acessar a internet? Gorski montou um gráfico “mostrando”
que são os orgânicos que causam autismo,
e que é tão impressionante – e válido – quanto o de Seneff. De fato,
um estudo recente publicado no British Medical Journal indica que o
aumento registrado nos casos de autismo foi um efeito da mudança dos
critérios de diagnóstico e da conscientização sobre o distúrbio, e não
de uma elevação real do número de crianças autistas.
É verdade, no entanto, que a Agência Internacional de Pesquisa do
Câncer (IARC) decidiu incluir o glifosato em sua Lista 2A, de “prováveis causadores de câncer em seres humanos”.
Os detalhes da decisão ainda não foram divulgados, mas é bom lembrar
que essa categoria está abaixo da Lista 1 – dos cancerígenos
confirmados, como o tabaco – e que a Lista 2A inclui ainda fatores de
risco como fumaça de fritura e chá mate quente.
Agora, a mentira: voltou-se a afirmar que existe estudo “comprovando”
que transgênicos causam câncer em animais. O trabalho em questão, já
desacreditado, é da equipe do pesquisador francês Gilles-Eric Séralini. Entre outras falhas, Séralini usou em seu experimento uma espécie de rato que já tem predisposição para desenvolver câncer
– em outras palavras, os bichos provavelmente teriam ficado doentes de
qualquer jeito, não importa que comida os cientistas lhes dessem.
E quem traz à tona esse trabalho francês, há mais de um ano repudiado e
relegado à lata de lixo da literatura científica pelo mesmo periódico
que o publicou originalmente
– algum tempo depois, Séralini conseguiu convencer uma segunda revista a
dar guarida a seu artigo, mas a comunidade científica continuou muito
pouco impressionada – , costuma deixar de mencionar, por ignorância ou
má-fé, o resultado publicado recentemente no periódico Journal of Animal Science,
que comparou os registros sobre saúde do gado e dos frangos criados nos
EUA antes e depois da introdução dos OGMs na ração animal – que hoje é
quase 90% transgênica nos Estados Unidos –, e não encontrou nenhuma
diferença relevante.
Somados, medo e mentira geram o último item de nossa lista,
desinformação, que distorce a percepção de risco, enviesando o debate e
as políticas públicas: o uso descontrolado de pesticidas e
agrotóxicos, por exemplo, é uma ameaça ao meio ambiente e à saúde humana
– mas muito para a saúde dos trabalhadores encarregados de aplicá-los e
de suas famílias, e muitíssimo menos para a do consumidor final.
A preocupação desproporcional com o agrotóxico que “chega à mesa”
mascara o problema maior, assim como o medo infundado de OGMs se
sobrepõe a questões realmente graves envolvendo o modelo econômico e o
impacto ambiental (independente do copyright do DNA da planta) do
agronegócio.
Gente “bem intencionada” que usa esses espantalhos com o pretexto de
chamar atenção para os verdadeiros problemas presta um desserviço, ao
minar a credibilidade do debate. Não importa quanta atenção seu
argumento inicial vá chamar: se ele for demonstravelmente falso, fica
muito fácil para o outro lado desacreditar, aos olhos da opinião pública
e dos políticos, qualquer ponto válido que você venha a ter.
Fonte: Revista Galileu
Nenhum comentário:
Postar um comentário